fevereiro 14, 2012

Benção

Era tanta dor! Era como se fosse explodir, a pressão subindo, a cabeça doendo, os dentes rangendo. Os nós nos dedos brancos de tanto apertarem o lençol. E ela sentia-se sendo partida ao meio. Sangrava.
Nunca em toda a vida sentira uma dor tão grande. Era quase enlouquecedora. Ardia, contorcia, apertava e parecia não parar nunca. Antes haviam intervalos, mas... Agora era tudo dor. Enxergava tudo vermelho, tudo cerrado.
O rosto empapado de suor lutava para manter-se em pé e lutar contra a dor, mas o corpo inteiro pedia por descanso. Sentia-se tonta, sabia que estava a um passo de desmaiar. Mas precisava lutar. Era a pior dor do mundo.
E aquela era a dor mais linda do mundo. Tinha o melhor motivo do mundo para continuar lutando. Um pedacinho seu viveria se ela lutasse. E aquele era a razão para tanta dor: um serzinho, um pedacinho seu vindo ao mundo, lutando pela vida.
Seu corpo lutava para expeli-lo para fora. Havia chegado a grande hora! E ela sentia-se a mulher mais feliz e realizada do mundo, mesmo com a dor intensa. Agarrava-se aos lençóis como à própria vida. E lutava para não perder a consciência, lutava para terminar logo com aquilo e ter seu pequeno no colo.
Houve uma luz no meio de todo o vermelho e toda a dor. Uma pontada mais forte. A dor foi tanta que ela teve certeza de ter se partido em duas. Urrou, lágrimas de dor e emoção tomaram-lhe os olhos. O choro de seu bebê ecoou pelo cômodo branco.
E ela chorou. Mais ainda. Convulsivamente. Deixou o corpo tombar na cama, os músculos relaxando, a dor amenizando, as lágrimas como uma cachoeira em seu rosto. Estendeu os braços, pedindo pela pequena criança. E quando o pequeno corpinho foi aninhado em seus braços, teve a certeza de que era a pessoa mais feliz do mundo.
O motivo de tanta dor estava ali, vivo, saudável, lindo! Ele respirava! Estava com os olhinhos fechados, mas não demorou a segurar sem força um dos dedos da mãe. E o laço foi selado. Eram um do outro e nada mudaria isso.
A mulher depositou um beijinho na cabeça do bebê e deslizou o nariz suado pelo rostinho coberto de sangue. Ele era a coisinha mais linda e mais delicada do mundo. Soluçou, apertando-o um pouquinho mais forte. E o cômodo voltou a ser vermelho, mas não era o vermelho da dor, era o vermelho puro, vermelho de amor e de verdade. Amor de mãe. Era a coisa mais preciosa que o pequenino poderia ter. E era o tesouro que carregaria consigo pelo resto da vida, passasse o tempo que passasse.
E ali, tendo o pequeno em seus braços, ela teve certeza de que a dor do parto tinha sido apenas a primeira dor que sentiria por ele. Por aquele serzinho tão pequeno e indefeso, ela daria a vida sem pensar duas vezes. Por ele, lutaria com unhas e dentes, daria seu melhor, sem titubear. Aquela criaturinha, tão pequena, era sua razão de viver a partir daquele momento.

fevereiro 07, 2012

Adios

Estava sentado preguiçosamente numa poltrona. A única luz na sala vinha do abajur, amarelada, pálida, fria. Ele segurava uma taça de vinho na mão direita. Vez ou outra levava-a aos lábios e saboreava o líquido vermelho. Seus olhos não tinham foco. E dali, daquela sala, daquela poltrona, ele podia ouvi-la no quarto.
Ouvia-a dançando no quarto. Ouvia os dois fazendo amor no quarto. Ouvia ela chorando no quarto. Ouvia ela fazendo as malas no quarto.
Levou o vinho aos lábios mais uma vez, fazendo um brinde com o vento - um brinde com o azar. Sorriu para o nada, não havia mais nada além de vazio nele e no quarto.
A porta da sala fechou-se com um estrondo oco. A casa agora estava vazia. Ele pode ouvi-la arrastar as quatro malas pelas escadas. Perguntava-se se devia te-la ajudado e sua consciência respondia que não. Sua consciência respondia que ela não pensara nele quando decidira ir embora.
Ela jamais pensara nele.
Serviu-se de mais vinho. O perfume dela ainda pairava no ar. O peito encheu-se de uma agonia torturante e as lágrimas vieram. A garrafa de vinho voou de sua mão até a parede mais próxima, jorrando sangue na tinta branca, manchando para sempre o coração do homem, os cacos machucando, perfurando, matando.
Ele apagou o abajur. Caminhou trôpego até o quarto. O perfume dela como veneno no ar. Os cabides como provas dolorosas de que ela havia partido, testemunhas cruéis de um crime que o mataria.
Deitou-se na cama, abraçou-se ao travesseiro da mulher, perguntando-se como conseguiria viver sem as mentiras e os risos dela, iluminando-o, fazendo-o perder-se e prender-se a ela. Absorveu tudo dela que ainda havia na cama, o cheiro, alguns fios de cabelos presos à fronha, as lembranças das noites de amor na cama.
E dormiu enlaçado às memórias dela.