outubro 23, 2012

Estou indo para casa


            Estava de volta ao lar. Estava tudo como era antes de sua partida. Os abraços continuavam acolhedores e havia ainda mais cumplicidade entre eles do que outrora. Era até estranho como os móveis continuavam no mesmo lugar. A poltrona estava inclinada em outra direção, mas ainda era a mesma. Haviam alguns novos porta retratos, algumas pessoas novas na vida da casa. Mas ainda era o mesmo lugar.
            Acolhedor, tranquilizador. Ali não havia problemas. Aquele era um santuário, o único lugar no mundo em que se sentiria bem, independente da tempestade lá fora. Naquele tapete ou naquela escadaria, ela jamais sentiria medo de trovões. Nunca haveriam bichos papões debaixo da cama. A lareira sempre estaria acessa, o fogo sempre crepitando, suave e de forma amável. O fogo sempre os uniria.
            De volta ao banheiro, soube que jamais encontraria outra ducha como aquela, onde os buraquinhos nunca entupiam e onde o jato era tão forte que relaxava todos os músculos do corpo de uma vez só. Bem como o espelho, que parecia sempre refletir o melhor de cada um e, de alguma forma ainda não explicada pela a ciência, sempre arrancava sorrisos da pessoa refletida ali.
            Em cada um dos quartos havia uma lembrança boa, de sonhos que aconteceram há muito tempo atrás, de acontecidos que marcaram história e a memória, de gente boníssima que foi até ali fazer rir ou chorar, compartilhar histórias e segredos e vidas. Aliás, aqueles quartos já viram muitas vidas nascerem.
            Dentro do armário, ainda era possível ver todas as lembranças escondidas ali: cartas, declarações, segredos sussurrados no cair da noite, sorrisos trocados, confidencias e o mais puro amor brotando de ambas as mãos. Dentro do armário, ainda havia um pedacinho de cada um. Ali era o coração da casa, o tesouro maior, recipiente de todas as lembranças boas e ruins. Em cada caixinha ali dentro, havia um coração, uma oração e uma coleção de sorrisos. Os sorrisos mais lindos do mundo.
            Todas as conversas estavam ali, escritas nas paredes. Cada palavra escrita com sangue e com amor. Os sussurros, as confidências, tudo isso impregnava as paredes e aquele coração, que ainda batia por conta daquela casa.
            Mesmo com todas as mudanças, ali ainda era um lar. Confortável e seguro. Um santuário no meio daquele mundo de guerras e traições. Havia muita poeira. Algumas dobradiças estavam enferrujadas e os armários cheios de cupim. Mas bastava uma limpeza, um pouco mais de amor dedicado àquele lar, e tudo voltaria ao normal. Tudo voltaria a ser como sempre deveria ter sido. 

outubro 17, 2012

Almas Gêmeas


                Estavam de mãos dadas no meio de uma enorme multidão. Ainda assim, com todo o barulho e toda a algazarra, era possível ouvir o coração do companheiro. Por mais que nem todos vissem o que acontecia ali, eles sabiam. Aquele casalzinho perdido no meio de um mar de corpos, sabia que pertenciam um ao outro. E aqueles corações, que batiam tão descompassados e tão felizes, só batiam porque estavam juntos.
            Eles trocaram um sorriso confidente, e todos os segredos compartilhavam apareceram por um segundo. A intimidade entre ambos, a confiança... Tudo esteve ali, presente naquele sorriso. Quem olhava de longe, mesmo sem conhece-los, sabia que naqueles dedos entrelaçados havia amor. E amor daqueles fortes e duradouros.
            O laço que os unia era invisível apenas para eles. Todos os outros, expectadores daquele amor, podiam ver. Era mais do que destino, ou confiança, entrega ou compatibilidade. Ambos eram mais do que isso, quando estavam juntos. Eles eram um só. Um só a ponto de completarem as frases um do outro, de se conhecerem sem forçar e de dividirem os mesmos medos e os mesmos segredos.
            Até mesmo de longe, um espectador mais sensível notaria a fraca luz vermelha que os envolvia quando estavam juntos. Alguém desatento, quando os visse, pensaria “que casal bonitinho”. Porque eram. E eram bem mais do que isso também: estavam predestinados.
            Deus, o Destino, uma Energia... Não importa no que você acredite, quando olhasse para os dois entenderia que havia alguma força maior atuando ali. Entenderia que estava escrito, em algum lugar, mesmo que fosse apenas no coração dos dois, que pertenciam um ao outro.
            Não haveria medo que apagaria isso. Ou insegurança. Muito menos falta de confiança. Porque, por mais que sentissem isso, o que os unia fazia com que superassem, fazia com que acreditassem de todo o coração e com toda a alma.
            Eles eram um, ali, no meio daquela multidão.
            Ali, uma senhora curiosa notou. E teve felicidade ao dizer: Duas almas gêmeas se encontraram. Acreditem, não saiu em nenhum jornal. Nenhuma emissora de tevê anunciou. Ninguém pareceu importar-se e, no mundo inteiro, pareceu não fazer a diferença. Mas no mundo dos dois, fazia. Sempre faria.
            Estavam juntos. E era para vale. Era para sempre. Eles eram um do outro. 

outubro 05, 2012

Cigana


            – Aproximem-se, senhoras e senhores! Tapem os olhos das crianças e preparem-se! – Os tambores rufaram, saudando a bela morena que adentrava o palco improvisado. – Clamem por ela! Ofereçam-se para morrer em seu nome!
            Ela estava coberta em vermelho, o corpo dourado escondido por um véu. Apenas os olhos muito negros, marcados pelo lápis escuro eram visíveis para os espectadores. Havia uma luz que vinha de trás, e pelo véu quase transparente era possível ver o contorno do corpo perfeito.
            – Oh, deusa minha! Piedade, piedade de meu coração! – Foi a súplica que ouviram pouco antes da música aumentar. O homem que fez o pedido ajoelhou-se diante da cigana, que tremulou o quadril em resposta.
            Instantaneamente, ao som da música e do vento, a mulher passou a dançar, o véu descendo pelo corpo, deixando as curvas perigosas à mostra. No ritmo ditado pelos instrumentos de percussão o corpo da morena deslizou pelo ar, cortando-o de forma delicada. E os lábios carnudos nunca deixavam de sorrir para sua plateia.
            Os acessórios de ouro que a cigana usava, adornando-lhe o rosto e os pulsos faziam sua própria sintonia, parecendo guia-la na sinfonia que era sua dança. Os braços esguios da mulher ergueram-se no ar, soltando o véu. O tecido caiu acariciando a pele da cigana, que rodopiou uma vez e, quando parou, encarou seu povo.
            Eram óbvios os olhares de cobiça sobre seu corpo. E era óbvio a forma como estes pareciam alimentá-la. A cigana terminou seu show ajoelhada no chão, o tronco arqueado para trás, o enorme cabelo negro arrastando no palco. O peito inflava a cada expiração da morena, que levantou-se em seguida, recebendo os aplausos com o sorriso mais sedutor do mundo.
            A forma como ela curvou-se, agradecendo à plateia foi digna de uma rainha. Enquanto isso, o homenzinho que a anunciara mais cedo recolheu o dinheiro que foi jogado para a deusa, que logo sumiu de minha vista.
            E só então senti que a bruxa havia levado muito mais do que minha admiração. Dentro de mim, uma parte do coração faltava.
            Cigana... Devolva o que roubou de mim! Sussurrei ao vento. Ainda era possível sentir o fogo que emanava do corpo dela. E a visão de sua dança não saía de meus olhos. 

outubro 03, 2012

Mártir



                Eu já morri tantas vezes... Tantas vezes que você se assustaria caso eu lhe contasse. Você duvidaria, meu amigo. Perdi o sono por cem dias. E por cem vezes, perdi-me de mim mesmo. Já jejuei por mil anos. E por mil anos, encontrei-me comigo mesmo a cada novo amanhecer.
            Quando tudo foi escuro, dentro de mim encontrei forças para levantar. E, ainda assim, me derrubaram novamente. Feriram-me por quinhentas vezes. Quinhentas chibatadas em meu couro negro. E ainda assim, me reergui. Ainda assim, criei forças para não gritar e não sucumbir.
            Por uma longa eternidade, pediram-me perdão. E ainda pedem. E com o coração voltado para o céu eu digo que os perdoo. Mas meu corpo talvez não...
            Quando tive de sorver para dentro de mim todo o medo e a insegurança, quase explodi. Mas de algum lugar surgiram forças, tornando-me elástico, capaz de absorver e absorver. E quando houve fogo em cada pedaço de minha carne, eu fui gelo. Implacável, inquebrável em meus mil metros.
            E quando insistiram em devastar-me, em privar-me de mim mesmo, eu gritei. Lutei com todas as minhas forças e me encontrei com alguém muito parecido comigo virando uma esquina qualquer, de um beco qualquer do meu coração.
            Houve apenas um som. Um tiro ecoando pela caixa torácica, pelo crânio e pela alma. E ali, encontrei a morte mais uma vez.
            Eu já menti tantas vezes... E a cada mentira era um prego cravado em minha língua.
            “– Pai! Por que me abandonastes?” – Eu não cansava de me perguntar. E ainda me pergunto, senhora.
            Quando quiseram prender-me entre espinhos e algemas, eu revidei. Eu aplaquei. Eu sufoquei cada um de vocês. Eu me libertei, senhores!
            –  Ouçam! Quando o Inverno vier, corram! Corram por suas vidas, camaradas! E corram por si mesmos! Arranquem os olhos de seus algozes! Privem-nos da vida que querem privar de vocês!
            E incontáveis vezes perdi as palavras. Ou não ouvi as palavras. Ou não pensei nas palavras. Não as absorvi e não me apaixonei por elas.
            Sou como essas palavras: Eu já morri incontáveis vezes.