Papel e Grafite sempre foram bons amigos. Mais do que
isso, sempre foram os melhores amigos de um pequeno passarinho. Enquanto a
pequena ave não tornava-se grande o suficiente para voar, as palavras lhe
mostravam a doçura das nuvens, o gosto do Sol lambendo-lhe as costas e
aquecendo-lhe a alma. As palavras ensinaram ao pequeno ser alado o quão
minúsculo ele era em meio às silabas, pronúncias, idiomas, formas de acentuação
e pontuação... Depois de tanto conviver com seus melhores amigos, o passarinho
realmente compreendia e abraçava a sua pequenez, grato por ter dois amigos
infinitos que lhe serviam de escudo contra as coisas assustadoras do mundo que
ele não conhecia; amigos tão grandes que eram capazes de traduzir em palavras
doces a beleza e imensidão do mundo que ele não estava pronto para conhecer.
Conforme o tempo passava, essa amizade crescia, os laços
se estreitavam e era quase impossível ver o pequeno pássaro sem seus fiéis
amigos. Grafite e Papel faziam questão de ensinar ao pequeno o quão doce e
bonito o mundo poderia ser. Era com palavras cálidas que o mundo tornava-se
sonho para o doce passarinho. Era com fome que a avezinha abraçava a realidade
cantada por seus amigos, cada vez mais ávido para provar de toda aquela beleza
com os próprios dedos.
Demorou para que o dia tão esperado chegasse. A pequena
ave era só sorrisos. Despediu-se com carinho dos familiares, dos sonhos de criança
e do ursinho de pelúcia que usava como travesseiro. Ele disse adeus à cama
quentinha, à comida da mãe e aos joelhos ralados.
E ele lançou-se ao doce mundo!
Mas o mundo não lhe recebeu com a candura prometida...
Houve logo uma chuva torrencial que o impedia de enxergar o que havia à frente.
Ou abaixo. Ou ao lado! Os raios e trovões o assustavam, o vento o tirava da
rota traçada e confundia a viagem do pássaro. Tudo o que houve foi um baque.
Uma batida. Um “pow” quase inaudível na chuva de sons que era aquela
tempestade. O som de trovão dentro do pequeno crânio do pássaro. Ele caiu,
inconsciente.
Acordou muito depois, acolhido nos braços de alguém que
não era sua mãe. No meio da confusão que o levara até ali, ele perdera-se dos
amigos. Soube por uma boca desconhecida que o Grafite havia-se quebrado em
vários pedaços. E que o Papel havia se desmanchado com a chuva.
O pequeno pássaro nunca se sentira tão triste em toda a
vida. Estava perdido ali, não sabia como voltar para a casa. E estava
machucado, uma de suas asinhas estava quebrada. Não sabia nem se conseguiria
chegar em casa naquele estado. Seu coração estava partido e solitário em meio
àquele monte de gente desconhecida. Ele quis chorar, e chorar e chorar. Mas
lembrou-se da promessa de um Sol carinhoso que lhe aqueceria e levaria embora a
tristeza. Com isso em mente, tratou de conseguir um lugar para ficar.
Logo as pessoas ali tornaram-se amigas do passarinho, que
cantava todos os dias para alegrar seus companheiros. Ele contava as histórias
que ouvira de seus amigos, e todos pareciam surpreendidos.
“Papel
e Grafite deviam estar contanto histórias de outro mundo!” Era o burburinho que
corria a massa quando o passarinho começava com suas histórias. Logo, as
pessoas o chamavam de louco pelas costas. Quando ele vinha chegando, tratavam
de se afastar com alguma desculpa esfarrapada.
“Alguém
tão bobo que acredita que as nuvens tem gosto não merece nossa atenção”, era o
que murmuravam as senhoras, saindo das janelas quando a criatura pequenina e
assustada passava por perto.
Sim,
o pássaro estava assustado! Aquelas pessoas se diziam suas amigas... E agora...
Bem, agora ele era tratado daquela forma. Sempre que começava a falar, riam
dele. Apontavam-lhe os dedos acusadores, chamando-o de bobo, infantil e
esquisito. As crianças já começavam a perguntar às mães quem era aquele cara
estranho, que tinha um bico e coisas parecidas com braços, mas que serviam para
voar. As mães, sempre muito sinceras, diziam que aquele passarinho indefeso era
um monstro, que eles deviam manter-se longe dele!
E
o pobre passarinho morria de solidão a cada novo dia. Ele sentia falta de
quando tinha amigos, do carinho que recebia deles, das palavras de consolo...
As palavras... Papel e Grafite sempre souberam como remendar as feridas bobas
do coração de criança. Essas novas feridas, de adulto, eram mais profundas,
mais doídas. E o passarinho não sabia exatamente como curá-las. Ele tinha medo
de que não curassem nunca.
Durante
uma noite e um dia, o pássaro chorou. Ele soluçava e rezava ao Sol para vir,
lamber-lhe as costas e, quem sabe, limpar um pouquinho os machucados que
impregnavam seu coração. Ele continuou rezando.
Até
que uma nuvem de leite condensado ouviu suas preces. Desceu até a cidade da
Desolação, onde o pequeno passarinho vivia, e lhe curou a asa machucada
enquanto ele dormia. Ao lado do corpo miúdo, ela deixou duas moedas de prata.
Quando
o pequeno pássaro acordou e percebeu que estava curado, ele chorou de alegria,
agradecendo aos céus por estar de volta. Beijou as duas moedas e colocou-as
numa mochila. Sem demora, o passarinho voou para longe daquela cidade de
pessoas más. Ele voou para longe daquelas pessoas ruins, que insistiam em
açoitá-lo mesmo quando ele já estava esgotado.
Por
dois dias, ele voou. Voou sem parar nem para comer. E quando finalmente
encontrou o que queria, pousou com lágrimas nos olhos. Ele sentou-se na grama e
observou o que procurava por algumas horas.
-
Vocês foram meus melhores amigos... Eu sinto falta de vocês. Estou ainda muito
ferido por dentro. Estou dolorido até minha alma! Já não sei se posso amar
alguém como amei vocês, nem com a mesma intensidade. Eu sinto falta do que me
ensinaram, do mundo que me mostraram e que nem pude conhecer... – Chorou o
passarinho, desolado, enquanto olhava os restos de seus amigos.
Foi
quando uma fada apareceu diante do pequenino.
-
Eles eram seus amigos? – perguntou a fadinha, doce em sua fala de criança.
O
passarinho assentiu com um movimento desesperado de cabeça.
-
Os melhores do mundo? – insistiu a fadinha.
Novamente,
o passarinho assentiu.
-
Você sente falta deles? – ela era incansável.
Foi
quando o passarinho começou a chorar. De dor, de saudades, de cansaço. A
fadinha sentou-se ao lado dele e esperou que ele terminasse de chorar. Fazendo
cafuné no passarinho, a fada sorriu para ele.
-
Eu posso te trazer de volta uma parte deles, passarinho. Mas vai lhe custar
duas moedas de prata. – Sorriu a fadinha.
E
então, o passarinho notou o quanto fora abençoado. Entregou as duas moedas que
encontrara ao acordar e ajoelhou-se diante da fada.
Com
um movimento delicado, a fada criou um caderno que não tinha fim e um lápis que
não se quebrava nunca. Entregou ao passarinho e lhe beijou o coração.
-
Você não está mais perdido agora, passarinho. Com o coração dos seus amigos,
você pode voltar para casa.
E
a fada desapareceu no ar.
Mas,
ao invés de voltar para casa, o passarinho passou a escrever tudo o que seus
amigos, Papel e Grafite, lhe ensinaram. Todas as cores do mundo, todos os bons
sons, todos os sonhos, todos os sabores e todos os amores também. Quando
terminou, o passarinho distribuiu seus sonhos por aí. Dizem que ele nunca mais
se importou com o que diziam sobre ele. Porque agora ele tinha o que precisava,
ele tinha suas palavras. E as palavras são as melhores amigas de um homem.
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