novembro 25, 2014

fevereiro 04, 2014

É tudo uma questão de prefixo.

O barulho das sirenes era impossível. Eram carros de polícia, bombeiros, médicos e para médicos em seus coletes laranjas corriam para acudir a vítima. Havia sangue por todo o lado, e o olhar de desespero dos transeuntes revelava o que aquele mar vermelho escrevia: as chances de sobrevivência eram ínfimas. Do meio do burburinho, era possível ouvir além de suspiros e lamentos, perguntas aparentemente sem resposta. “O que será que houve?”, diziam os que acabavam de passar. “O que pode ter motivado o pobrezinho a fazer um absurdo desses?” indagavam mais para Deus, do que uns para os outros, os que haviam assistido tudo desde o começo.

Alguns metros na vertical, numa das janelas do terceiro andar do velho prédio que sombreava a avenida, olhava para o corpo inerte no asfalto uma menina. Ela era a única que poderia dizer o que verdadeiramente havia acontecido ali, mas ninguém prestava atenção em seus olhos curiosos. Os olhos eram vazios, insensíveis, sem emoção alguma. Aparentemente. Se alguém olhasse mais de perto, se alguém se colocasse ao lado dela, descobriria olhos marejados, mãos trêmulas e dentes cerrados. Estava na verdade em choque, como quem perde a coisa mais importante da vida num único momento de descuido.

Tinha olhos tão escuros quanto o cabelo, que caía bagunçado quase até a cintura. Era apenas um emaranhado de cabelo e perda, aquela menina. Se o tal alguém que numa situação hipotética se colocou ao lado dela, insistisse em perguntar-lhe o que havia acontecido, a menina-da-vida-bagunçada teria dito, numa voz baixinha, tão assustada quanto o olhar: “Eu vi. Eu senti”. Ela teria contentado-se em dizer apenas isso. Mas nesse ponto, o interlocutor demonstra uma curiosidade quase irrefreada. Sem pensar muito, dispara: “Você viu quando o pobrezinho pulou?”!

E aí, seria tarde demais. Ela fugiria pela janela, bem como o nosso morto do início da história. Ninguém gosta de ser colocado contra a parede. A menina fugiria pela janela, estabacaria-se no asfalto, fraturaria dez ossos difíceis de consertar e daí já não seria mais a história do “que se suicidou”, mas “da menina que fugiu”. Felizmente ou não, não é do nosso interesse, de nenhum de nós três, mudar o título dessa história.

Graças a Deus, nosso interlocutor é um bom moço e apenas observou a menina. Ele a avaliou em seu silêncio cheio de reticências. Tentou compreender o que causava aquele estranho nó em seus cabelos, mas não só neles. Havia nós por todo lugar. Na cabeça, nos olhos, na garganta e também no coração. Tantos nós deixavam-na com mãos e pés atados. Seria assim, nesse panorama emaranhado, que ela se pronunciaria.

“Entrou um homem. Ele e o Coração eram amigos. Ele dizia cuidar e amar do Coração, você sabe? Juntos, eles foram subindo, subindo e subindo! E o Coração estava tão feliz! Você precisava ver, pra entender. Ele sentia-se nas alturas! Verdadeiramente estava. Ele era o Coração mais feliz do mundo, o meu… Então, hoje descobrimos juntos que o tal rapaz traía meu Coração. Numa tentativa de roubá-lo de mim, deixou-o cair. Lá do alto. Do último andar. Da maior felicidade do mundo. Meu Coração caiu. E agora está em tantos pedacinhos, que nem todo o Super Bonder do mundo pode colocar no lugar. Foi isso o que aconteceu. Não foi suicídio, seu moço. Foi homicídio. Homicídio doloso qualificado”.