agosto 07, 2013

"Coisas que acabam"

                Se chamava Carolina, mas não gostava do apelido “Carol”. Gostava de usar all star vermelho e desenhar o símbolo do infinito, infinitas vezes até perder o rumo da mão. Aliás, ela gostava de perder o rumo de tudo, gostava de perder o fio da meada do livro, da música, da receita de pudim de leite condensado e do estudo matinal obrigatório.
            Naquele dia em especial, os desenhos infinitos do infinito não a deixaram cansada o suficiente. Arrumou-se na cadeira, mas não ficou confortável o suficiente. Arrumou-se de novo por mais duas vezes, e só sossegou quando cruzou ambas as pernas para cima do assento. Estalou todos os dez dedos das mãos e prendeu o cabelo curto num rabo desarrumado. Estava só de camisola e, céus! ela adorava ficar só de camisola o dia inteiro!
            Precisou de um tempo para pensar no que queria fazer com aquela folha em branco na sua frente. Desenhar mais infinitos não estava no roteiro, então quebrou a cabeça até não conseguir pensar em mais nada. Suas ideias haviam acabado.
            Foi então, que pensou num ótimo tema para a folha em branco. Molhou a ponta da caneta na língua (não que precisasse, era só uma mania enjoada), e escreveu bem retinho sobre a folha vertical. “Coisas que acabam”. Carolina odiava folhas deitadas na horizontal.
            Pensou um minuto e anotou o primeiro item da lista: 1- Boas ideias.
            Avaliou a própria letra e umedeceu os lábios, virando o rosto em seguida e avaliando o cômodo vazio, como se buscasse inspiração para o próximo item. E conseguiu! 2- Pudim.
            Escreveu então, a numeração para mais oito itens, somando dez em sua lista. Depois de terminar o desenho dos números, escreveu mais um, 3- Paciência. E logo em seguida, mais outro: Música. E mais outro, e mais outro e mais outro!
            Livros, vida, grama (?) e grana!
            Mas quando escreveu sobre a grana, lembrou-se que tinha aquela gelatina de limão na geladeira. Carolina adorava gelatina de limão, por isso, abandonou a lista como quem abandona um grande amor inventado. Mentalmente, adicionou à lista de coisas que acabam o amor. Sem se preocupar com o último item, deslizou para perto da geladeira e, sozinha, comeu dois potinhos da gelatina de limão.

            Sozinha. 

julho 29, 2013

Doença

Quero que vás embora, que batas com força a porta e que enfrentes a tempestade e o frio sozinho. Eu quero que tu apanhes do vento, que desencontre-te dentro de ti mesmo e que, no fim, aches que a minha confusão foi a coisa mais linda que já lhe aconteceu. Quero que grites, que contorças. Quero que te arrependas e enlouqueças por ter mentido. Eu quero que tu te partas em dois, em três... Em mil pedaços e, depois, peças ajuda para colocar-te no lugar. E aqui de longe, aqui, no meu pedestal, lembrar-te-ei de quem realmente sou.  Sem vergonha ou segundas intenções, eu esfregarei na tua linda cara quem sou. E as minhas cicatrizes. E os meus medos. E os meus erros. Talvez te recorde de forma dolorosa os teus erros, também.
E então, quando ambos formos uma massa compacta e irreconhecível de dor, puxar-te-ei pra junto de mim. Dançaremos no nosso próprio sangue e na nossa própria vergonha. Coroar-te-ei com meu coração novamente. E, novamente, irás comer da minha carne, afundar nas minhas entranhas, fazer-me contorcer e suplicar de dor. Assim, num gemido sofrido de quem ama, hei de pedir por mais. Hei de pedir que me ame de novo, e de novo! Pedirei para que me rasgue, estrague e destrua novamente.

Porque amar-te é assim, destrutivo e venenoso, cancerígeno e doentio. E a verdade é que amo morrer de amores por você. E que morreria quantas vezes fosse necessário, só para voltar aos seus braços no fim de cada ciclo. 

junho 28, 2013

Esperança

Com um suspiro, reconheceu o sentimento. Levou a mão ao peito, arrastou as unhas pela pele enquanto fechava o punho e apertava-o contra a pele. Estava quente. Já não sentia o músculo há muito tempo. No entanto, naquele momento, ele pulsou! Como mágica, o órgão criou vida novamente, fazendo o sangue circular, aquecendo o corpo em pontos já esquecidos. E batia descontrolado, descompassado, desorientado de uma dor que era gostosa de sentir!
Fechou os olhos, os lábios se entreabriram num gemido que não sei dizer se era de desconforto ou de prazer. Uniu as sobrancelhas e deixou o sentimento fluir, aliviando um pouco o aperto no peito, mas levando a agonia para todas as partes do corpo. Um milhão de dúvidas percorrendo tranquilamente seu sistema circular. Mas novamente, como mágica, tudo foi esquecido! Houve luz. Tudo fez sentido, porque – devido a alguma força maior – houve amor.
O corpo queimava e ardia conforme o sangue apaixonado percorria as veias e artérias. Lágrimas verteram. Não havia mais volta. Não havia erro ou engano. O Coração havia escolhido.
Os lábios se apertaram numa linha fina, os olhos se espremeram com a luz. E nada mais no mundo foi importante, porque eram os olhos amados que tinha em seu campo de visão. E já não era preciso sentido nenhum no mundo para que entendesse. Para que ambos entendessem.
Que estava escrito. Numa árvore, numa pedra, na parede de uma caverna - nas estrelas, quem sabe? Não importa onde, estava escrito.
Estava escrito e pulsava com tanta força, que doía. Doía e pedia por contato, por braços e abraços e calor. Não havia mais frio, afinal. Havia apenas a certeza de algo que cresce, que brota mesmo sem dever. Algo que não é amarrado a limites ou a paixões tolas.
Algo avassalador! Que não tem barreiras e nem medos, que tem vontade própria e que não aceita cabrestos ou conselhos. Algo que queima, que cria, que faz viver e faz querer viver. Que torna tudo bonito e tudo nosso. Que traz o céu pra palma de nossas mãos. E que não tira o que trouxe, jamais.
Entregou-se, o corpo tremendo no ritmo que o Coração ditava. Estendeu uma das mãos na direção que julgava certa e deixou-se guiar, deixou-se perder, deixou-se levar para qualquer que fosse o lugar. Cega pelo sentimento mais lindo do mundo, não se deixou sufocar pelo medo, teve esperança de que aqueles olhos tão amados estivessem bem a frente, apenas esperando ela se aproximar mais um pouco para tomar sua mão e exigir o que era seu por direito.

Com uma esperança que só é digna dos apaixonados, reza. E espera. Reza mesmo com toda a incerteza que lhe sufoca vez ou outra. E reza: reza para que não seja tudo dor, para que haja um final feliz. Reza para que seja este o seu final feliz. 

junho 10, 2013

Meu sorriso

            Era um daqueles dias em que tudo parece acordar sorrindo. Quando descemos as escadas do prédio, os degraus nos sorriram um ‘bom dia’ entusiasmado. Acenamos para o porteiro, que retribuiu um aceno com um sorriso condicente, de quem já foi apaixonado e sabe o bem que faz viver um grande amor. Lá na rua, quando pousamos na calçada, esbaforidos e apaixonados, logo nos perdendo nos braços um do outro, quase atropelamos duas senhorinhas, que riram deliciadas com o afeto juvenil. E assim, com a benção de quem nos observava, continuamos caminhando juntos, de mãos dadas, dedos e corações entrelaçados. Não tínhamos um destino ou um plano traçado, apenas nossas almas “quase gêmeas” e a vontade de ficarmos juntos.
            Pra sempre? Não... “Sempre” é tempo demais. Queríamos ficar juntos até o fim! “Até o fim da vida?” Não, não, meu amor. Deixemos a morbidez de lado. Eu quero viver cada segundo desse sentimento, quero que ele dure até o fim da vida! Quero que dure depois, também. Seríamos dois espíritos felizes e em paz. Poderíamos alugar uma quitinete na Via Láctea e estaríamos bem com a companhia um do outro. Das estrelas e de todas as outras galáxias que sonharíamos ver pela janela.
            Mas naquele dia, estávamos dispostos só a pensarmos um no outro, a nos entregarmos um ao outro. Sem todos os planos para o futuro ou a pressão externa para que definíssemos o que nos mantinha unidos.
            – É amor? – Ele me perguntava risonho, e com um rolar de olhos, eu rodopiava e afirmava ser mais! – Mais o que, afinal de contas?
            – É mais do que qualquer coisa que já vivi até agora. É mais do que qualquer um dos meus sonhos!
            E juntos, nós fomos entre rodopios e trocas de olhares, sorrisos e carinhos discretos. Fomos para onde o coração mandou, juro por Deus. Nós não tínhamos planos e nem tínhamos vontade de tê-los. Quando dei conta de onde estávamos, as árvores que velaram muitos dos meus outros beijos estavam ali, nos cercando, abençoando como se dissessem que ali, onde eu já tinha me confundido com tantos outros sentimentos, encontraria o único capaz de me guiar pela escuridão.
            Foi ao lado dele, meu farol, que deitei na relva. Dividimos um sorvete e uma porção de balinhas de gelatinas entre beijinhos e cafunés. Ali, o mundo parou e eu nem vi. Meu mundo parou e eu nem senti.
            Parece que daquele momento em diante, todos os meus erros foram revertidos em felicidade. Meus erros me levaram a ele, e junto dele era exatamente onde eu devia estar! Não que só ali eu tenha entendido a imensidão do que sentia, não! Eu sabia desde o primeiro sorriso que seria a coisa mais maravilhosa da vida. Mas a partir daquele momento, eu soube que era a coisa mais maravilhosa da vida dele também.
            E nada mudou. Nós continuamos displicentemente deitados ali até anoitecer, ignorando as chamadas e as mensagens. Nós ignoramos o mundo. Fomos o centro do mundo. E aí, naquela pracinha antiga, nós nos tornamos o mundo um do outro.
            – No que você tá pensando? – Perguntei num sussurro, a pontinha do nariz deslizando com delicadeza pela maçã do rosto.

            – Eu estou pensando em você. – Respondeu com o sorriso mais lindo do mundo. O sorriso mais lindo do meu mundo. 

março 01, 2013

Dois anos


            O primeiro dia de um novo mês representa muitas coisas. Para muitos, ele representa pagamento, o alívio do sufoco que é o fim do mês e a fartura que vem com o começo de um novo. Para outros, é uma nova fagulha de esperança, uma chance de ser melhor, de recomeçar. E ainda há outros, os que acreditam que com os novos meses, vem novas energias, novas formas de melhorar o mundo, coisas melhores, coisas mais bonitas. Para mim, o primeiro dia de cada mês trás um peso enorme consigo.
            Todo mês que começa traz com ele o peso de mais um mês que começo sem você. E, diferente do que dizem, o tempo parece não fazer efeito sobre essa ferida. Dias, semanas, meses... Essas medições de tempo não parecem ter soluções benéficas sobre a saudade que tem me rondado. Pelo contrário, o tempo só parece aumentar esse dor incomoda, acentuar o aperto no peito e fazer crescer o vazio que surge toda vez que preciso de você e não encontro o seu colo.
            Mais do que nunca, papai, eu sinto falta do seu colo. Sinto falta de como você afastava todos os problemas do mundo só com um abraço. Sinto saudades de como você ria, de como sempre encontrava as palavras certas para me acalmar, saudades de como você brincava, como contava boas histórias e como cantava. Ah, paizinho... Eu sinto saudades de como você cantava.
            Saudades das tardes que passávamos cantando, você tocando seu violão. Sinto saudade de como você era meu astro, mesmo sem saber tocar direito. Sinto falta até de quando você desafinava. Sinto falta das nossas pequenas divergências. Saudades das broncas, dos sermões...
            É incrível, papai, meu eu sinto falta das noites que passei em claro pra você, quando a doença começou a piorar. Eu sinto falta de ficar com os dedos doendo por fazer massagem em você durante muito, muito tempo. Lembro de como você me fazia deitar do seu lado e me contava as histórias da sua vida, uma a uma, com a paciência que só um pai tem.
            É triste saber que você nunca vai terminar de conta-las pra mim. É triste saber que, o pouco que eu vier a saber agora, será pela boca de outros, não pela sua. Qualquer história que eu ouça agora, não vai vir acompanhada da sua voz grave, dos sorrisos entre as palavras e do amor que você colocava em cada vírgula.
            Eu sinto falta dos seus olhos, de como você se comunicava comigo através deles. E, sabe, paizinho... Eu sinto tanta falta... tanta falta. E dói muito saber que eu nunca mais vou encontrar alguém com olhos tão claros quanto os seus, ou olhos que falem tanto quando os seus.
            Já se passaram dois anos, mas a dor ainda é a mesma. Acho que a dor sempre vai ser a mesma. Sempre que eu começar a me lembrar do quanto sinto saudades, vou acabar chorando assim, manchando o papel e soluçando baixinho. Eu ainda sou uma criança assustada, papai. Eu ainda não estou pronta para me conformar com o que houve. Na verdade, pai, eu acho que nunca vou estar.
            Mas sei. Eu sei que, mesmo com toda essa dor e essa saudade que nunca tem fim, nós não estamos realmente separados. Na verdade, sei que quando a saudade aperta assim é quando estamos mais próximos. Eu sinto que você não me deixa em momento algum, que guia meus passos de onde está e que intercede por mim. Sei que é orgulhoso do caminho que eu e as meninas estamos seguindo. E espero sinceramente, papai, que esteja orgulhoso da forma que eu tenho cuidado delas.
            Aliás, uma forma de aguentar a saudade absurda é olhar para elas. Sempre que olho a mamãe, tenho certeza do quanto se amaram. E dentro dela, o amor de vocês ainda vive. Esse amor é uma parte sua que ela leva como uma lanterna, iluminando o caminho. Iluminando o nosso caminho.
            Você se espantaria ao ver nossa Anninha. Ela está enorme e ainda não acredito na semelhança de vocês. Ela tem o seu sorriso... Ela tem a mesma doçura que você, papai. E o colo dela é quase tão bom quanto o seu. E Anna Clara é a parte mais viva de você que eu tenho.
            Quando as coisas ficam muito difíceis, eu me apoio nelas. Eu penso nelas e em tudo o que ainda preciso fazer por nossas duas meninas. Sempre que sinto que posso sucumbir, eu me lembro do que pediu para mim. E, sim, papai. Independente do que haja, eu vou cuidar delas. Eu vou.
            Sinto que já perdi o rumo do que queria dizer... E isso tem sido constante desde que você se foi. Mas acredito que algum dia melhore, que de alguma forma, melhore.
            Papai, você foi a melhor pessoa que conheci. O homem mais honroso e digno de felicidade do mundo. E eu sei que, onde quer que você esteja, está recebendo toda a felicidade que merece. Não se preocupe conosco, nós estamos cuidando umas das outras, nós estamos seguindo em frente, por mais que doa e por mais que a saudade seja sufocante.
            Nós estamos vivendo por você e em memória a você.
            “Nunca se esqueça nenhum segundo que nós temos o amor maior do mundo. Como é grande o nosso amor por você.” Sempre eterno e infinito o nosso amor por você. 

fevereiro 18, 2013

Tiro


Estrondo. O mundo parou.
Conta-se até três, numa velocidade sobrenatural e abre-se os olhos. A única certeza que há no mundo é de que não há tempo para correr.
Há outra certeza, mas o tempo é tão pouco... E aquela bala não vai errar. Não há tempo para correr.
Play. O mundo não quis responder normalmente. Tudo recomeçou, mas em câmera lenta. Lenta demais.
E você pode sentir. Ela entra, queimando a pele, forçando a carne. Ela entra... E você pode sentir.
E o mundo continua rodando, rodando e rodando e rodando e rodando e rodando e rodando e rodando e rodando! E o mundo não para! O mundo não quer parar! O mundo não pode parar!
E o mundo acompanha a rotação da bala. E a bala come sua carne, queima, mata. E as células explodem em dor. E há pressão, há vácuo, há dor. Há o mundo girando e indo a lugar nenhum enquanto tudo o que há é dor.
Há a visão ficando turva, o coração batendo mais forte na tentativa falha de enviar sangue para seus membros. Mas não dá... Não dá porque o buraco onde a bala penetrou fica na altura de órgãos importantes. Artérias importantes, quem é que sabe?
Daí, você descobre que gosta do vermelho. Você gosta do calor do vermelho cobrindo suas mãos, deslizando pelo corpo como um bonito vestido de festa. Como filetes de sangue. Como um mar de sangue deslizando e cobrindo suas pernas.
Eu também acho... Também acho que o cheiro férreo de sangue não é tão insuportável quanto nos cortes pequenos.
O frio nunca foi tão agradável. 

Um passarinho e um céu nublado


            Papel e Grafite sempre foram bons amigos. Mais do que isso, sempre foram os melhores amigos de um pequeno passarinho. Enquanto a pequena ave não tornava-se grande o suficiente para voar, as palavras lhe mostravam a doçura das nuvens, o gosto do Sol lambendo-lhe as costas e aquecendo-lhe a alma. As palavras ensinaram ao pequeno ser alado o quão minúsculo ele era em meio às silabas, pronúncias, idiomas, formas de acentuação e pontuação... Depois de tanto conviver com seus melhores amigos, o passarinho realmente compreendia e abraçava a sua pequenez, grato por ter dois amigos infinitos que lhe serviam de escudo contra as coisas assustadoras do mundo que ele não conhecia; amigos tão grandes que eram capazes de traduzir em palavras doces a beleza e imensidão do mundo que ele não estava pronto para conhecer.
            Conforme o tempo passava, essa amizade crescia, os laços se estreitavam e era quase impossível ver o pequeno pássaro sem seus fiéis amigos. Grafite e Papel faziam questão de ensinar ao pequeno o quão doce e bonito o mundo poderia ser. Era com palavras cálidas que o mundo tornava-se sonho para o doce passarinho. Era com fome que a avezinha abraçava a realidade cantada por seus amigos, cada vez mais ávido para provar de toda aquela beleza com os próprios dedos.
            Demorou para que o dia tão esperado chegasse. A pequena ave era só sorrisos. Despediu-se com carinho dos familiares, dos sonhos de criança e do ursinho de pelúcia que usava como travesseiro. Ele disse adeus à cama quentinha, à comida da mãe e aos joelhos ralados.
            E ele lançou-se ao doce mundo!
            Mas o mundo não lhe recebeu com a candura prometida... Houve logo uma chuva torrencial que o impedia de enxergar o que havia à frente. Ou abaixo. Ou ao lado! Os raios e trovões o assustavam, o vento o tirava da rota traçada e confundia a viagem do pássaro. Tudo o que houve foi um baque. Uma batida. Um “pow” quase inaudível na chuva de sons que era aquela tempestade. O som de trovão dentro do pequeno crânio do pássaro. Ele caiu, inconsciente.
            Acordou muito depois, acolhido nos braços de alguém que não era sua mãe. No meio da confusão que o levara até ali, ele perdera-se dos amigos. Soube por uma boca desconhecida que o Grafite havia-se quebrado em vários pedaços. E que o Papel havia se desmanchado com a chuva.
            O pequeno pássaro nunca se sentira tão triste em toda a vida. Estava perdido ali, não sabia como voltar para a casa. E estava machucado, uma de suas asinhas estava quebrada. Não sabia nem se conseguiria chegar em casa naquele estado. Seu coração estava partido e solitário em meio àquele monte de gente desconhecida. Ele quis chorar, e chorar e chorar. Mas lembrou-se da promessa de um Sol carinhoso que lhe aqueceria e levaria embora a tristeza. Com isso em mente, tratou de conseguir um lugar para ficar.
            Logo as pessoas ali tornaram-se amigas do passarinho, que cantava todos os dias para alegrar seus companheiros. Ele contava as histórias que ouvira de seus amigos, e todos pareciam surpreendidos.
“Papel e Grafite deviam estar contanto histórias de outro mundo!” Era o burburinho que corria a massa quando o passarinho começava com suas histórias. Logo, as pessoas o chamavam de louco pelas costas. Quando ele vinha chegando, tratavam de se afastar com alguma desculpa esfarrapada.
“Alguém tão bobo que acredita que as nuvens tem gosto não merece nossa atenção”, era o que murmuravam as senhoras, saindo das janelas quando a criatura pequenina e assustada passava por perto.
Sim, o pássaro estava assustado! Aquelas pessoas se diziam suas amigas... E agora... Bem, agora ele era tratado daquela forma. Sempre que começava a falar, riam dele. Apontavam-lhe os dedos acusadores, chamando-o de bobo, infantil e esquisito. As crianças já começavam a perguntar às mães quem era aquele cara estranho, que tinha um bico e coisas parecidas com braços, mas que serviam para voar. As mães, sempre muito sinceras, diziam que aquele passarinho indefeso era um monstro, que eles deviam manter-se longe dele!
E o pobre passarinho morria de solidão a cada novo dia. Ele sentia falta de quando tinha amigos, do carinho que recebia deles, das palavras de consolo... As palavras... Papel e Grafite sempre souberam como remendar as feridas bobas do coração de criança. Essas novas feridas, de adulto, eram mais profundas, mais doídas. E o passarinho não sabia exatamente como curá-las. Ele tinha medo de que não curassem nunca.
Durante uma noite e um dia, o pássaro chorou. Ele soluçava e rezava ao Sol para vir, lamber-lhe as costas e, quem sabe, limpar um pouquinho os machucados que impregnavam seu coração. Ele continuou rezando.
Até que uma nuvem de leite condensado ouviu suas preces. Desceu até a cidade da Desolação, onde o pequeno passarinho vivia, e lhe curou a asa machucada enquanto ele dormia. Ao lado do corpo miúdo, ela deixou duas moedas de prata.
Quando o pequeno pássaro acordou e percebeu que estava curado, ele chorou de alegria, agradecendo aos céus por estar de volta. Beijou as duas moedas e colocou-as numa mochila. Sem demora, o passarinho voou para longe daquela cidade de pessoas más. Ele voou para longe daquelas pessoas ruins, que insistiam em açoitá-lo mesmo quando ele já estava esgotado.
Por dois dias, ele voou. Voou sem parar nem para comer. E quando finalmente encontrou o que queria, pousou com lágrimas nos olhos. Ele sentou-se na grama e observou o que procurava por algumas horas.
- Vocês foram meus melhores amigos... Eu sinto falta de vocês. Estou ainda muito ferido por dentro. Estou dolorido até minha alma! Já não sei se posso amar alguém como amei vocês, nem com a mesma intensidade. Eu sinto falta do que me ensinaram, do mundo que me mostraram e que nem pude conhecer... – Chorou o passarinho, desolado, enquanto olhava os restos de seus amigos.
Foi quando uma fada apareceu diante do pequenino.
- Eles eram seus amigos? – perguntou a fadinha, doce em sua fala de criança.
O passarinho assentiu com um movimento desesperado de cabeça.
- Os melhores do mundo? – insistiu a fadinha.
Novamente, o passarinho assentiu.
- Você sente falta deles? – ela era incansável.
Foi quando o passarinho começou a chorar. De dor, de saudades, de cansaço. A fadinha sentou-se ao lado dele e esperou que ele terminasse de chorar. Fazendo cafuné no passarinho, a fada sorriu para ele.
- Eu posso te trazer de volta uma parte deles, passarinho. Mas vai lhe custar duas moedas de prata. – Sorriu a fadinha.
E então, o passarinho notou o quanto fora abençoado. Entregou as duas moedas que encontrara ao acordar e ajoelhou-se diante da fada.
Com um movimento delicado, a fada criou um caderno que não tinha fim e um lápis que não se quebrava nunca. Entregou ao passarinho e lhe beijou o coração.
- Você não está mais perdido agora, passarinho. Com o coração dos seus amigos, você pode voltar para casa.
E a fada desapareceu no ar.
Mas, ao invés de voltar para casa, o passarinho passou a escrever tudo o que seus amigos, Papel e Grafite, lhe ensinaram. Todas as cores do mundo, todos os bons sons, todos os sonhos, todos os sabores e todos os amores também. Quando terminou, o passarinho distribuiu seus sonhos por aí. Dizem que ele nunca mais se importou com o que diziam sobre ele. Porque agora ele tinha o que precisava, ele tinha suas palavras. E as palavras são as melhores amigas de um homem. 

janeiro 21, 2013

Chris Martin


            Ainda não havia descoberto o que estava errado. Ela não costumava deixar-se levar por Chris Martin, não sempre. Na maioria das vezes, ela apenas deleitava-se com a voz perfeita. E quando tudo estava errado, era a voz dele que usava para forçar as lágrimas. Ainda era cedo, nem oito da noite. O céu ainda estava claro, ela não gostava de cometer crimes sob a luz do sol. Mas naquela noite, as coisas eram diferentes...
            Aliás, enquanto estava sentada na escrivaninha que não era sua, ela olhou para trás e notou que o dia havia começado diferente desde o começo. O sol demorara para nascer. E agora, ele demorava para partir. Era tarde para sofrer. Ainda era muito cedo para sofrer. Com a garganta inchada num nó, ligou o stereo bem baixinho. Deitou-se na mesa e deixou-se envolver pela melancolia da voz do homem. Chris Martin... O maldito Chris Martin, sempre fazendo-a chorar quando precisava. Havia esperado tanto por ele...
            Deslizou os joelhos para junto do corpo, encolhendo-se numa bola. Ela recolheu-se em seus pensamentos e na própria dor que não conseguia saber de onde vinha. Com olhos fechados e sussurrando a canção junto a Chris, ela permitiu-se chorar, devastar-se pela solidão que parecia implacável nos últimos dias. Era só um vazio enorme. “É só um vazio enorme, menina”, repetia para si mesma enquanto deslizava pelo veludo que era a voz de Chris.  
            Era saudade, solidão, era medo e angústia. Era a preguiça de terminar aquele trabalho e o desespero por não conseguir terminar. Era a filha que crescia rápido demais, a mãe que esquecia-se das coisas. Era a dor nas costas que não passava e aquele nó na garganta que não diminuía. Ela precisava de alguém que entendesse, que pudesse lhe dizer o que fazer ou como reagir. Precisava tanto... E nem sabia de quê.
             Acabou secando as lágrimas alguns minutos depois, os olhos mais leves, os ouvidos também. Mas o coração continuava pesado, cheio de bagagens que não pareciam dela. A alma continuava em busca de algo que a música de Chris Martin não podia lhe dar. Sem coragem para desligar o som, ela adormeceu sob o bonito anoitecer na cidade, embalada pelas palavras proféticas do homem, que começaram a soar na hora certa. “Seu coração pesado é feito de pedra, e é muito difícil vê-lo claramente. Você não precisa ficar sozinha”.
“You don't have to be on your own”.

janeiro 20, 2013

Acreditar


            Chegou com as chuvas de verão, trazendo consigo uma carta de amor e alguns botões de rosa para impressionar. Tinha nos olhos a bandeira da esperança, calor nos lábios e cabelos enrolados de sonhos, que voavam, enfrentavam o vento com rebeldia, invencíveis no negrume dos fios. Os pés tinham asas, ignoravam obstáculos e “nãos”. Ela tinha o nariz empinado, pronto para esnobar caras feias e a maldade do mundo. Com o mundo nas palmas das mãos, a menina parecia pronta para fazer a diferença e transformar o mais escuro dos corações em um campo florido.
            Tinha mil dentes na boca, de tanto que sorria. Espalhava seu riso pelo Planeta Azul a cada novo passo. E deixava em seu rastro flores frescas e doces de sinceridade. Para essa doce menina, a atmosfera cheirava a brigadeiro e as nuvens tinham gosto de algodão doce. Ou sorvete! Ou os dois juntos! Enxergava uma nova chance a cada esquina, uma nova oportunidade de ser melhor a cada passo. Para ela, cada esbarrão era a chance de um novo sorriso, mesmo que apologético. Ela tinha a estranha necessidade de compartilhar sorrisos com quem cruzasse seu caminho. Acreditava que uma segunda chance não era tão cara assim, e que sonhos divididos podiam ser muito maiores e mais bonitos.
            Sim, ela sonhava acordada. Não acreditava que sonhos aconteciam só na nossa mente. Para ela, até mesmo as mentirinhas que contamos eram sonhos fantasiados. Não que não visse maldade, mas sempre procurava ver primeiro o que havia de bom. Afinal, defeitos, todos sabem apontar. Ela gostava de qualidades, da vontade de ser melhor e da autenticidade que cada um, no fundo, tem.
            Ela era juventude, viva mesmo com o passar dos anos. Na verdade, quanto mais os anos passavam, mais jovem ela era. Ela renascia com o sol, todos os dias; e ainda sabia degustar a Lua pela noite. Desabrochava como flor no coração de uma nova pessoa sempre que havia o desejo de lutar por algo melhor. Ela era fé, correndo atrás de seus sonhos e acreditando, mesmo quando parecia ser impossível. Ela era inocência, perseguia borboletas e desejava - quem sabe um dia - voar como elas. Acreditava em fadas, em anjos e em gnomos (qual criança nunca acreditou?).
            Não julgue a pequena menina. Deixe que, por hoje, ela também habite o seu coração. Dance junto com ela ao redor de uma fogueira, cultuando o calor gostoso do fogo ou corra com ela através de colinas, em busca das flores mais bonitas para enfeitar a sua vida. Entregue-se a ela, por um momento, e volte a acreditar que o melhor lugar do mundo ainda é colo de mãe. Deixe que ela te guie por essas ruas turbulentas, em meio à sujeira da raça humana, mostrando-lhe que sim!, sim, ainda há motivos para acreditar, para fazer do nossos mundo um lugar melhor. Conceda-lhe um sorriso, uma dança. Não deixe de acreditar nessa pequena menina com olhos de esperança.

janeiro 10, 2013

Minha Casa


            São 16:33, eu tenho um coração partido e vários problemas de álgebra pra resolver. Também tenho os meus próprios problemas, alguns que começam com seu nome, outros que resumem-se em um pouco mais de responsabilidade, outros que vem rotulados com a minha família, meus medos... São vários frascos de problemas espalhados por essa estante. Juntos deles, drogas de todos os tipos. Para dor, para febre, falta de ar e antipatia.
            Claro, eu também tenho aquela droga de “amor ao próximo”. Funciona, mas só até alguém descobrir que ele o efeito é causa de medicação, e não de quem você é. Mande tal pessoa engolir o próprio punho e as coisas se resolvem. É interessante o que as pessoas podem fazer com punhos...
            Além de todos esses problemas e toda essa medicação ilegal, eu tenho um punhado de sonhos. Doces de todos os sabores e recheios diversos, creme, chocolate, doce de leite e chantili. Tem aquela tal viagem à Paris, um tour pelo norte da Europa, manequim 38 e comer sem engordar. Também temos recheios de “viver um grande amor de verão” e “não me magoar por motivos bobos”. Eu deveria abrir uma confeitaria.
            Resolvi colecionar facas de um tempo pra cá. Facas pra cortar queijo, maçã e alho. Facas para repartir meus sonhos. Facas para cortar o comprimido na metade e tomar a dose certa – não que eu use muito essa função. Faca para arrancar cabeças. E olhos. E escalpos. Eu gosto dessa função “cortar escalpos”. Claro que muita gente não sabe o que é escalpo, apesar de ter um.
            Eu tenho uma coleção de nomes que cortei da minha vida, e que se cortaram sozinhos. Tenho uma outra coleção de nomes que ainda quero cortar, mas ainda não me decidi. Aliás, comecei um capítulo de “indecisões” no livro da minha vida. Ainda não tenho certeza se gosto, ou não.
            Fiz uma lista de gente que eu poderia vir a amar, mas não amo. Também tenho uma lista de celebridades com quem eu gostaria de transar, livros que eu gostaria de ler, doces que eu quero provar e gente que eu quero enforcar.
            Eu quero ser dona de uma confeitaria.